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A evolução das coisas úteis: clipes, garfos, latas, zíperes e outros objetos do nosso cotidiano

Henry Petroski
Tradução de: The evolution of useful things
tradução, Carlos Irineu W. da Costa


Como o garfo ganhou dentes
A forma segue as falhas
Os inventores como críticos
De alfi netes a clipes para papel
As pequenas coisas podem ter grande importância
Prender e então puxar
Ferramentas criam outras ferramentas
Padrões de proliferação
A moda dos eletrodomésticos e o desenho industrial
O poder do precedente
Fechar primeiro, abrir depois
Grandes lucros com pequenas mudanças
Quando o bom é melhor que o ótimo
Sempre é possível melhorar

Uma coluna intitulada “A marcha dos engenheiros”, o crítico social
e humorista Russell Baker lamentava a complexidade e sofi sticação
do novo sistema telefônico de seu escritório.1 Não criticava apenas o fato
de que todos precisassem freqüentar um curso de treinamento para usá-lo;
em sua opinião, novos serviços, como o redirecionamento de chamadas,
levavam a tecnologia longe demais — ele queria poder viajar para lugares
distantes sem que as ligações telefônicas o seguissem mundo afora. Baker
encerrava o artigo defi nindo o novo sistema telefônico como “outro triste
exemplo dos horrores criados quando os engenheiros se recusam a fi car
satisfeitos com o que já está bom”.
Toda mudança tecnológica tem potencial para ser adorada e odiada. O
que parece ser “bom o sufi ciente” para um crítico pode ser defi ciente para
outro, e o papel dos críticos pode se reverter de acordo com as épocas e as
situações, até quando se trata da mesma pessoa. No caso do redirecionamento
de chamadas, por exemplo, um repórter pode achá-la uma invenção fantástica
caso esteja tentando achar alguém para confi rmar um detalhe num artigo
cujo prazo de entrega é urgente.
Russell Baker não é o único crítico da tecnologia do fi nal do século XX
que lamentou a criação de um novo sistema telefônico. Donald Norman, em
seu livro O design do dia-a-dia, escreveu que “os novos sistemas telefônicos
se mostraram outro excelente exemplo de design incompreensível”.2 De
fato são confusos e cheios de botões, constituem um paradigma virtual
para a investigação que Norman faz acerca das invenções modernas que
“mais atrapalham que facilitam a vida”. Ele podia “apostar que encontraria
o péssimo exemplo” de um novo sistema sempre que viajasse, e muitas
das histórias que conta parecem verdadeiras a qualquer pessoa que tenha
passado pelo trauma de se adaptar a uma nova geringonça sobre sua mesa
de trabalho.3
A universidade em que trabalho há pouco ganhou seu próprio e sofi sticado
sistema telefônico, e grande parte das minhas primeiras impressões foram
similares às de Baker e Norman. Sentia-me mal por perder o conhecido
instrumento com o disco numérico, sua fi leira única de botões de extensão
e intercomunicação cujo código eu tinha passado a compreender. Com o
tempo, contudo, também me lembrei da frustração que senti ao lidar pela
primeira vez com aquele tipo de telefone, e então pensei sobre algumas de
suas falhas que haviam sido corrigidas pelo novo sistema. O velho telefone
negro fi cava conectado a dezenas de telefones similares por meio de apenas
três linhas externas, e só um deles podia fazer chamadas de longa distância.
Quando eu queria ligar para alguém, muitas vezes precisava esperar que um
dos botões acesos se apagasse e rezar para conseguir levantar o telefone do
gancho e ouvir o sinal de discagem antes de um dos meus colegas. Se errasse
na discagem daqueles dígitos que pareciam infi nitos, ou ouvisse o sinal de
ocupado, corria o risco de perder a linha para outra pessoa. Desde que os
novos telefones foram instalados, nunca precisei esperar para conseguir
linha e aprendi a vantagem de recursos como a rediscagem automática, que
me permite apertar um único botão para repetir uma longa seqüência de
números, e o retorno automático de chamada, pelo qual, quando se aperta
outro botão, meu telefone toca, assim que a linha ocupada fi ca livre.
Quanto ao redirecionamento de chamadas, este é um recurso que meu
telefone possui, mas ainda não usei para redirecionar minhas chamadas quando
estou de férias na praia. Em vez disso, empreguei-o com a intenção de enviar
chamadas para a secretária de nosso departamento, para que ela pudesse anotar
os recados ou lidar com os problemas quando não estava disponível ou não tinha
o desejo de atender ao telefone. Meu novo telefone também tem a ferramenta
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de mensagem de voz, que ao toque de um botão interrompe a chamada telefônica
e ativa um sistema que grava as mensagens — que posso ouvir e responder
de acordo com minha disponibilidade. Talvez o novo telefone de Baker possua
outros recursos, e ele tem toda a liberdade de usá-los ou ignorá-los. Do meu
ponto de vista, os engenheiros melhoraram de maneira considerável o que já
estava bom e me deram a opção de adotar as mudanças ou ignorá-las.
Admito que no começo o novo telefone era um pouco intimidador. Os
botões pareciam estranhos e havia opções demais. Também não gostava de ter
que fi car de pé, com vários colegas, ao redor de um representante da empresa
telefônica que falava com rapidez sobre os recursos e usava um jargão que
para ele era fácil e a respeito do qual tínhamos muitas dúvidas, mas éramos
orgulhosos demais para perguntar. Acredito que boa parte de meus colegas
acabou por aprender a usar um recurso de cada vez, assim como eu, passando
horas trancados em seus escritórios, queimando as pestanas com o manual
que era confuso e muitas vezes contraditório. Quando um de nós conseguia
entender um daqueles recursos esotéricos, costumávamos falar a respeito
durante o almoço e fi cávamos felizes porque a pessoa afi nal conseguira
aprender. Do mesmo modo, todos sentiam vergonha quando era o único a
não compreender algum daqueles detalhes herméticos.
Ter sentimentos ambivalentes quanto à evolução tecnológica não é algo
recente. Lembro-me de que quando surgiram os telefones com teclas eu
zombei deles. Por ingenuamente acreditar que o único propósito das teclas
era completar com maior rapidez as chamadas, eu ridicularizava qualquer
pessoa que não tivesse tempo de usar o disco mecânico para ligar para casa.
Mas nessa época eu era jovem, o tempo parecia passar devagar, e os números
de telefone eram bem mais curtos. Ainda estava maravilhado com o simples
fato de poder discar um monte de números e fazer com que alguém atendesse
em outro estado. Meu dedo se acostumou ao movimento nada natural, mas
agradável, de discagem. Ficava me perguntando quem iria querer discar
um telefone de maneira diferente ou mais rápida. Agora, depois de entrar
em contato com o telefone de teclas, acho difícil e muitas vezes irritante ao
extremo ter de girar o disco com o dedo em alguns aparelhos antigos que
tenho em casa. Parece que preciso esperar uma eternidade até que o disco
volte depois de chegar ao “9”, percorrendo um ângulo de mais de 270 graus.
Por que aquilo que em retrospecto se mostra uma óbvia vantagem
tecnológica nos deixa ressabiados de início? Em parte, parece ser uma
questão de familiaridade, pelo menos em relação a objetos inanimados
aos quais nossas mãos se adaptaram. O surgimento de uma forma, às vezes
acompanhada de novas funções, é ameaçador e invasivo. Afi nal, um artefato
tecnológico como o velho telefone negro com disco acabou obtendo status
de ícone cultural. Sem pensar, podíamos usá-lo e vê-lo usado. Mas há muito
ele deixou de chamar a atenção — mas basta um ator num fi lme discar um
número de telefone com apenas seis dígitos sem trocar o dedo de buraco para
que a verossimilhança da cena vá por água abaixo (a não ser, é claro, que o
erro seja proposital).
A introdução do telefone de teclas parecia ser o fi m de tudo isso, e
levamos certo tempo para reconhecer que ele havia nos trazido algumas
vantagens. Os tons eletrônicos das teclas tornaram-se tão habituais quanto
o modo hesitante com que o disco ia e voltava na discagem dos números,
e às vezes até lembram a melodia de nossas músicas favoritas. Acabei por
desenvolver certo prazer em apertar as teclas desse jeito staccato e, quanto
mais rápido teclo, mais satisfeito fi co. Os números de telefone passaram a
ter uma confi guração visual, consigo me lembrar de alguns apenas pelo
padrão distinto formado quando meu dedo percorre as teclas. Minha senha
do caixa automático do banco tem um padrão horizontal, enquanto o código
para acessar as mensagens da secretária eletrônica é mais vertical; sem esses
recursos mnemônicos visuais e físicos eu teria difi culdade para sacar dinheiro
ou acessar minhas mensagens.
É claro que os sistemas telefônicos mais recentes também apresentam
problemas, mas nada é perfeito. O desenvolvimento dos artefatos e suas infraestruturas
— o hardware e o software, em linguagem computacional — de
fato evolui por uma rota cujos marcos seqüenciais são: “bom”, “melhor”
e “excelente”, mas esse último parece estar sempre no fi m do arco-íris,
tão ilusório quanto um paraíso perdido. O caminho em si com freqüência
apresenta desvios, paradas temporárias, sendas erradas, retrocessos e acidentes.
E quando a tecnologia é complexa e suas metas ambiciosas, a estrada que
leva até o desempenho e a aceitação plenamente satisfatórios muitas vezes
está cercada de dúvidas e críticas, com panes e acidentes. Às vezes, nem os
designers ou os usuários de uma nova tecnologia de início a compreendem
por inteiro, o que faz com que seu progresso seja lento, gerando grandes
engarrafamentos.
Algumas das frustrações de Baker a respeito do telefone foram ecoadas
recentemente em relação a diversos produtos eletrônicos. Um editorial da
revista de comércio Design News apresentava a irritação do editor com produtos
que na opinião dele deveriam ter um design melhor.4 O texto soou
verdadeiro para vários leitores, quase todos designers ou engenheiros, que
responderam com suas próprias listas de “produtos irritantes”. As embalagens
foram citadas por muitos, que as achavam “efi cientes demais” ou “impenetráveis”.
Este é um problema que existe desde os primórdios, como no
caso do predador que tem de rasgar a carne da sua presa, ou do habitante de
uma ilha que precisa abrir um coco. Vimos que a lata passou a existir bem
antes do surgimento de um abridor efi ciente, e, hoje em dia, chegar até o
alimento envolvido por tanta embalagem plástica pode ser muito frustrante
e demorado para vários adultos hábeis em outras coisas, como se pode
observar nos diversos vôos em que os passageiros tentam abrir um saquinho de
amendoim. De fato, não há desculpa para os designers criarem embalagens
tão seguras a ponto de os consumidores reclamarem delas.
Os controles nos equipamentos eletrônicos não deixam de ser um
tipo de embalagem: se não tivermos a capacidade de domá-los, não conseguiremos
usar o produto dentro da caixa-preta. Entre os leitores da Design
News, a “reclamação mais universal” era em relação “às diferentes técnicas
para programar relógios, despertadores e videocassetes”. Isso é sem dúvida
compreensível: quem já não usou o método da tentativa de acerto e erro e já
não pulou para cá e para lá sobre diversos fi os para fazer com que determinado
aparelho eletrônico funcionasse? Eu mesmo, quando consigo dominar
alguns passos para fazer com que o despertador mostre direito as horas, ou
que o videocassete grave e reproduza, raramente vou em frente para explorar
os outros controles. Portanto, nunca abro por completo a embalagem para
chegar aos recursos adicionais.
Apesar de nossas frustrações e difi culdades com os equipamentos eletrônicos,
vamos em manadas até as lojas para comprá-los. Já em 1990, 3/4
dos lares dos Estados Unidos possuíam fornos de microondas, e mais de 60%
tinham videocassetes. As pessoas que não possuem tais produtos, quando não
são ridicularizadas, ao menos constituem alvo de campanhas publicitárias
em que mesmo as empresas fabricantes conseguem reconhecer os problemas
de seus produtos imperfeitos. Uma dessas empresas, a Goldstar Electronics,
ao lançar a campanha que ressaltava como seus produtos eram “fáceis de
usar”, admitia que “a percepção de grande parte dos consumidores é de que
os sofi sticados produtos eletrônicos disponíveis no mercado são difíceis (se
não impossíveis) de utilizar”. Portanto, desejava passar a imagem de que suas
mercadorias eram “feitas de olho em pessoas de carne e osso”.5 A Goldstar,
num desdobramento irônico para uma área industrial que parece lançar
produtos cada vez mais complexos, queria diferençar suas mercadorias das de
seus competidores mais conhecidos, afi rmando que eram “menos sofi sticadas”
e mais fáceis de usar.
A função básica dos produtos eletrônicos — o que inclui todas as suas
características especiais — quase nunca foi questionada. Espera-se que um
relógio digital informe a data e as horas, que toque o alarme, e assim por
diante. Um videocassete deve gravar programas, reproduzir fi tas e permitir
que gravemos algo enquanto assistimos a outro canal ou jantamos fora. Tais
objetivos foram incorporados de maneira notória aos problemas de design, e a
partir deles surgiram as soluções agora visíveis nas páginas dos catálogos e nas
prateleiras das lojas. A variedade disponível, principalmente na confi guração
dos mostradores e dos controles, não passa de outra prova de que a forma não
é determinada pela função. Aliás, como vimos diversas vezes, é a incapacidade
de esses dispositivos desempenharem suas funções de modo perfeito que faz
com que evoluam, a partir de suas falhas, até a “perfeição”. Este é, porém,
um objetivo bastante relativo, pois no meio tempo os usuários irão se adaptar
às imperfeições dos produtos existentes. Um objeto nunca pode ser visto em
separado de quem o utiliza, mesmo durante sua evolução.
O motivo por que os designers não acertam de primeira talvez seja mais
compreensível que perdoável. Quer prestem menos atenção ao funcionamento
de suas invenções, quer a familiaridade que têm com as entranhas eletrônicas
de seus monstrinhos os deixe insensíveis às birras dos aparatos, existe o
consenso partilhado por consumidores e críticos como Donald Norman
(que disse que o “design usável” é “a nova fronteira competitiva”) de que as
coisas quase nunca cumprem o que prometem.6 Norman é categórico em
sua afi rmação: “Tarjas com advertências e manuais de instruções grandes são
sinal de fracasso, uma tentativa de remendar problemas que deveriam ter sido
evitados já no começo por um design decente.” Ele tem razão, é claro, mas
por que os designers podem ter sido tão cegos?
Se considerarmos o problema de criar o design de qualquer objeto, desde
um clipe para papel até uma ponte, passando pelo forno de microondas, o
objetivo principal precisa ser, é óbvio, fazer com que o produto desempenhe
sua função primordial, seja ela prender papéis, cozinhar ou permitir que se
atravesse um rio. É evidente que os designers irão primeiro se concentrar
nesses elementos e, durante o processo, se acostumar com suas criações. Os
projetistas originais dos clipes, por exemplo, sabem como é o arame que
dobram primeiro em suas mentes, depois no papel e por fi m com a ajuda de
máquinas. Aprendem que alguns tipos de arame quebram quando dobrados
em ângulos muito pequenos, e que outros não são maleáveis o sufi ciente para
serem moldados. Com o tempo, acabam dobrando o tipo adequado de arame
no formato específi co que corresponde às metas (às vezes erradas) que eles
mesmos se impuseram. No entanto, é bem mais provável que acabem com
diversos arames em inúmeras confi gurações diferentes, como demonstram as
muitas patentes, cada qual tentando salientar as vantagens que possuem em
relação às outras.
A partir dessas confi gurações, seus parceiros no negócio, na fabricação e
nas vendas irão selecionar uma para fazer e vender. Embora nunca se perca de
vista o objetivo de como o produto fi nal deve ser usado, as pessoas envolvidas
em todo o processo de design fi cam tão acostumadas e condescendentes com
sua invenção que conseguem operá-la com uma facilidade e um cuidado
quase impossível para os não-iniciados. Um ato que parece simples, como
prender vários documentos com um novo tipo de clipe, é sempre mais fácil
para o inventor do dispositivo que para o usuário de primeira viagem.
Mesmo se fi zermos um esforço extra para submeter o design de um
produto a um engenheiro que tenha mais em mente os fatores humanos, e
cuja tarefa seja sugerir modifi cações para fazer com que o artefato seja fácil
de usar, o sucesso da empreitada será tão completo quanto a capacidade que
ele tem de antecipar as falhas do produto. Se os engenheiros, por exemplo,
supõem de modo tácito que todos os usuários vão ser destros, talvez 10% da
população tenha difi culdade em usar o produto. O sucesso depende muito
da antecipação e eliminação das falhas, e é quase impossível prever todos
os usos e abusos a que o produto estará sujeito até que de fato ele seja usado
e abusado, não no laboratório, mas na vida real. Assim, artefatos recémcriados
raramente chegam perto da perfeição, mas nós os compramos e
nos adaptamos à sua forma porque eles cumprem, mesmo que de maneira
imperfeita, a função que julgamos necessária.
Quer seja a aceitação ou rejeição o destino de algum novo dispositivo
ou sistema tecnológico, o processo evolutivo é composto de dados relativos
e comparativos. Mesmo que Russell Baker tenha criticado os engenheiros
por não deixarem em paz o que “está bom o sufi ciente”, o que é “bom o
sufi ciente” depende, como sempre dependeu, de fatores subjetivos. De
certo ponto de vista, a vida pré-histórica estava ótima para o homem e a
mulher pré-históricos. E, aliás, os artefatos e a tecnologia que existiam na
época desempenhavam um importante papel na defi nição da natureza. As
ferramentas e os costumes pré-históricos eram (talvez até perfeitamente)
adequados para se lidar com o mundo pré-histórico. O argumento de que os
avanços tecnológicos eram necessários para que a civilização avançasse, na
melhor das hipóteses, é tautológico, e, na pior das hipóteses, semelhante ao
mito de que a necessidade é a mãe da invenção.
Afi nal, o motor da evolução tecnológica talvez seja tão inexplicável
quanto o da evolução natural. Isso não quer dizer que não exista algum
tipo de dinâmica em ação, mas sugere que um tipo de processo evolutivo
está envolvido de modo inextricável nos processos da vida e na existência.
A tecnologia e seus artefatos subsidiários são concomitantes à existência
humana e nos impelem a compreender sua natureza e também a nossa
— necessariamente falhas e imperfeitas. Tal compreensão é mais acessível
no plano microcósmico e microtemporal, onde uma coisa segue a outra de
forma tão natural quanto o fi lho segue o pai. Ela é mais apurada quando
soluciona os dilemas do famoso, do obscuro, do grandioso e do ínfi mo, do
aceito e do rejeitado, ao explicar ao mesmo tempo a criação e a divergência a
respeito do sucesso em um mesmo sistema comum.
As diversas manifestações de fracasso, como fi ca evidente nos estudos de
caso analisados neste livro, fornecem a base conceitual para compreender a
forma evolutiva dos artefatos e como eles estão interligados com a tecnologia.
É a percepção do fracasso na tecnologia disponível que impulsiona inventores,
designers e engenheiros a modifi car o que outros talvez considerem perfeitamente
adequado, ou pelo menos utilizável. O que constitui um fracasso
ou uma melhoria não é de todo objetivo, pois, na análise fi nal, uma lista
considerável de critérios, que vão da funcionalidade à estética, da economia à
moral, podem vir a ter alguma infl uência. No entanto, cada aspecto deve ser
julgado no contexto do fracasso, e este, embora mais facilmente quantifi cado
do que o sucesso, sempre implica um pouco de subjetividade. O espectro
da subjetividade talvez fi que mais objetivo dentro dos limites da discussão
disciplinar, mas quando diversos indivíduos e grupos juntam-se para discutir
os critérios de sucesso e fracasso, o consenso pode ser algo bastante fugaz.
É natural que, quanto mais simples o artefato e quanto menos critérios
aplicarmos para julgá-lo, menos controvertida e estabelecida será sua forma.
O clipe para papel, por exemplo, tão inofensivo e controlado, parece atrair
mais a admiração que a ira dos críticos e colunistas de jornal, e parece ser
aceito por quase todas as pessoas como uma pequena maravilha moderna.
Quem pensaria o contrário senão os próprios inventores? Mesmo assim,
ao observarmos com atenção esse artefato tão pouco sofi sticado em termos
tecnológicos, descobrimos a essência de como até as coisas mais elaboradas
evoluem. Um sistema complexo como uma usina nuclear, por outro
lado, que possui diversos detalhes em todos os níveis e é julgada segundo
inúmeros critérios, incluindo alguns bastante rígidos, é um péssimo manual
de iniciação para a tecnologia. Mas quem não se importaria com uma usina
de força? Um sistema telefônico está no meio-termo de complexidade e
importância. Não interessa seu nível tecnológico se os mesmos princípios
evolutivos governam esses artefatos e aqueles que surgirem no meio
do caminho. Assim, entender mais a respeito de um deles nos permite
compreender melhor (e controlar) a todos.
Seria a tecnologia sempre algo positivo, pelo menos em suas intenções
sociais? A resposta mais simples é “não”, pois parece sempre ter existido entre
nós aqueles que exploram a tecnologia da mesma maneira que exploram as
pessoas. Assim como os mágicos há tempos empregam truques e engenhocas
para enganar a platéia, os vendedores inescrupulosos muitas vezes abusam
da tecnologia ou brincam com a confi ança de suas vítimas na objetividade da
tecnologia. O açougueiro que pressiona o prato da balança de carne com o
dedo talvez esteja entre os exemplos mais grosseiros desse engodo; versões
mais sofi sticadas da mesma atitude existem desde o começo da história.
Há quase 2.500 anos, o autor peripatético de Mecânica se perguntou
por que as balanças grandes eram mais precisas que as pequenas. Depois de
responder à sua própria pergunta com uma explicação geométrica complicada,
que envolvia as propriedades do movimento circular, esclareceu que alguns
mercadores de tinta desonestos preferiam as balanças menores porque com
elas seria mais fácil enganar o comprador: “É assim que os vendedores de
tintura roxa montam suas balanças para enganar o comprador: colocam o
cordão fora do centro e põem chumbo num dos braços da balança, ou então
usam madeira [mais pesada] no lado que desejam inclinar.”7 Um pequeno
desequilíbrio a favor do comerciante fi caria evidente num braço mais pesado
das balanças maiores; desse modo, a balança menor era preferível caso o
vendedor quisesse que seu embuste passasse despercebido.
Mas tais aberrações no uso da tecnologia não devem condená-la, assim
como os criminosos não podem sentenciar toda a raça humana. Não que
os designers e os engenheiros, por vezes a serviço de pessoas da estirpe
daqueles mercadores de tinta, não cometam erros ou não façam julgamentos
incorretos; eles de fato fracassam — mas todos estamos sujeitos a erros em
tudo que fazemos. Todos nós já pegamos a estrada errada acreditando estar
no caminho certo, e quando isso acontece, o melhor é reconhecer o erro o
mais rápido possível, parar o carro na beira da estrada e consultar um mapa.
Mas todos sabemos como é mais fácil, ainda mais diante de outras pessoas,
continuar na direção errada, em lugar de admitir o erro e tratar de corrigi-lo.
Designers e engenheiros, que, afi nal, são em primeiro lugar pessoas, podem
estar sujeitos aos mesmos riscos, principalmente quando também sofrem de
alguma cegueira tecnológica que torna difícil, se não impossível, enxergar
os diversos níveis de um problema apresentado pelo design. Um público
compreensivo e consciente da tecnologia envolvida é a melhor prova de fogo
de um design problemático.
A capacidade que os seres humanos têm de se adaptar às imperfeições
dos produtos talvez seja o fator determinante da forma fi nal de muitos dos
objetos que usamos, mesmo a contragosto. Apesar de toda a reclamação de
Russell Baker a respeito do novo sistema telefônico, ele sem dúvida acabou
se adaptando, e talvez até tenha passado a apreciar (sem escrever sobre isso)
pelo menos um dos recursos que antes considerava estranho ou hermético.
Isso não signifi ca que a tecnologia marcha adiante de modo inexorável, e que
nós corremos o risco de ser deixados para trás se não a acompanharmos: em
vez disso, pode-se dizer que a evolução da esmagadora maioria dos artefatos,
tanto na forma quanto na função, é no fundo bem-intencionada e pensada
para o bem comum.
O próprio fato de que somos adaptáveis aos produtos e à tecnologia
presentes em nosso cotidiano muitas vezes nos deixa resistentes às mudanças
no ambiente que nos cerca, em especial quando envelhecemos e passamos
a acumular as coisas com as quais nos acostumamos. Como os telefones
antigos não possuíam recursos como redirecionamento de chamadas e
secretária eletrônica, por exemplo, era necessário aceitar o fato de que
havia o risco de perder alguma ligação, ou então tomar alguma medida
para não perdê-la. Um repórter ou outra pessoa que dependesse muito do
telefone poderia certifi car-se de que as chamadas seriam atendidas durante
sua ausência — por um colega, pela secretária, por um assistente ou até por
uma secretária eletrônica. Não precisávamos de nada diferente. Mas quando
novas invenções se tornam disponíveis, alguns de nós podemos de imediato
ver as vantagens que trazem. Os recursos automáticos nos telefones mais
recentes permitiram que mesmo um profi ssional freelance que trabalha
em casa tenha, num único aparelho telefônico, toda a comodidade de um
escritório com funcionários e uma rede telefônica. No entanto, é sempre a
geração jovem demais para se familiarizar com as coisas antigas, mas não
tão jovem a ponto de não ter recursos fi nanceiros, que costuma aceitar
primeiro uma nova tecnologia.
Quer fi quemos do lado dos críticos de mais idade ou da nova geração, a
forma dos artefatos que terão impacto em nossas vidas é moldada de acordo com
a percepção de alguém sobre as falhas dos artefatos já existentes. Há grande
chance de que tal pessoa seja um engenheiro, um designer ou um inventor
que observa o mundo do jeito peculiar aos críticos da tecnologia. Se tiver
como produzir o protótipo de um artefato aperfeiçoado, se possuir o talento
comunicativo ou o poder de persuasão para fazer com que um patrocinador
possibilite a produção do protótipo, então o resto da humanidade talvez tenha
a opção de escolher entre o antigo e o novo. Em alguns casos, a escolha não
está em nossas mãos, pois os fabricantes podem ter seus próprios critérios a
respeito do que constitui o fracasso e o aperfeiçoamento, e tais juízos incluem
o lucro e o prejuízo. Assim, o que na opinião do público parece necessitar
de melhoria talvez pareça pouco lucrativo para os fabricantes. As decisões
para tornar algo mais leve, fi no ou barato podem estar tanto baseadas na
percepção de uma defi ciência quanto na decisão de ajustar um relógio que
não mostra as horas direito.
A evolução da forma começa com a percepção das falhas e se propaga
por meio da linguagem dos comparativos. “Mais leve”, “mais fi no”, “mais
barato” são afi rmações comparativas de que há uma melhoria, e a possibilidade
de dizer que um novo produto possui tais qualidades infl uencia de maneira
direta a evolução de sua forma. A competição é, por sua própria natureza,
uma luta pela superioridade. Assim, os termos superlativos “mais leve”, “mais
fi no” e “mais barato” muitas vezes se tornam metas fi nais. Porém, como
acontece com todos os problemas de design, quando há mais de uma meta,
elas costumam ser incompatíveis. Portanto, o cristal mais leve e mais fi no
também pode ser o mais caro. Os limites à forma dos artefatos, contudo,
também são defi nidos pelo fracasso, uma vez que pode ser difícil usar um
produto de cristal muito leve e fi no.
Certa vez vi uma taça de água Orrefors ser quebrada quando um dos
convidados a ofereceu ao fi lho pequeno. A criança, talvez acostumada a meter
os dentes em potes de vidro ou copos plásticos, não atentou para a delicadeza
da taça e fez o cristal se espatifar em diversos pedacinhos. O acidente foi tão
repentino que assustou a criança e fez com que o vidro quebrado simplesmente
caísse de sua boca. Nem sua boca nem sua percepção foram maculadas, mas
a mãe fi cou muito envergonhada, e minha esposa e eu fi camos com uma taça
a menos em nosso jogo de cristal.
A mãe da criança, é claro, ofereceu-se para repor a taça, e então
encomendou outra. Quando a peça chegou, minha mulher percebeu de
imediato que era mais pesada. E todas as reposições posteriores foram tão
caras quanto as antigas, mas as peças nunca eram tão leves ou fi nas quanto às
do presente original de casamento, que havia sido dado na época em que os
cristais Orrefors eram feitos com o mínimo de espessura possível; as pessoas
faziam os pedidos de reposição reclamando da fragilidade excessiva. Sem
dúvida criaram-se taças mais leves e fi nas, porém, até os adultos precisavam
ter muito cuidado para beber nelas, e lavá-las era uma operação delicada. O
cristal era tão leve e fi no que pousar uma taça de vinho meio inclinada sobre
uma mesa não acolchoada era o sufi ciente para trincá-la. Deixar o cristal
mais fino fazia com que a luz tivesse um efeito ainda mais bonito e delicado
sobre o copo e seu conteúdo. No entanto, as taças teriam durabilidade tão
pequena que quase sempre seriam mantidas na cristaleira, enquanto taças de
água e vinho mais fortes permitiam que os comensais desfrutassem o jantar
sem quebrar os cristais nem ficar apreensivos.
Se compreendermos o mundo do design como algo que engloba não só as
coisas que podemos segurar nas mãos e operar, mas as organizações e sistemas
que produzem e distribuem tais coisas, então podemos explicar quase todas as
gerações e alterações de qualquer artefato ou sistema tecnológico como algo
que reage às falhas reais ou imaginadas de seus antecessores. Mas já que até
essas falhas são na verdade uma questão de grau e defi nição, o que constitui
uma melhoria para uma pessoa pode ser uma piora para outra. Existem
inúmeras patentes para coisas que eram consideradas novas e úteis por poucas
pessoas além do próprio inventor e do examinador de patentes. Tais utensílios
existiam como exemplos distintos apenas na mente, nos desenhos e talvez nos
protótipos de algumas pessoas, mas eram reações às falhas anteriores tanto
quanto os produtos mais bem-sucedidos.
Jacob Rabinow descreveu a história do design da fechadura à prova de
ladrões, invenção que sem dúvida corrigia uma defi ciência das fechaduras
existentes. Sua idéia para uma fechadura mais segura consistia em uma
chave feita a partir de uma folha de metal bem fi na, dobrada em um formato
que empurrava as tranquetas somente até as posições corretas. As
ferramentas típicas de quem arromba fechaduras, como grampos de cabelo,
não funcionariam porque a espessura desses objetos empurraria as tranquetas
para fora da posição certa. Rabinow obteve uma patente para a fechadura
e outra para a chave, mas não conseguiu vender a idéia para nenhum
fabricante, porque a chave tinha um formato muito “peculiar”. Ele repetia
o ditado de Raymond Loewy a respeito dos designs “mais avançados e ainda
assim aceitáveis”, ao dizer que os fabricantes tinham como lema “melhorar
sempre, mas não mudar nada”.
A inércia do gosto comercial pode evitar que a forma das coisas mude
em excesso ou rápido demais. Porém, não existem formas inalteráveis, e há
muitos fracassos evidentes. Seja detectada pelo fabricante, pelo inventor ou
pelo consumidor, a falha de um produto — se ele é leve, pesado, fi no, grosso,
barato, caro — como produto imaginado ou real irá estabelecer mudanças
que acabarão por afetar, mesmo que da menor maneira possível, a forma do
mundo ao nosso redor.
O próprio Thomas Edison, cujo recorde de 1.093 patentes levou a
algumas das formas mais difundidas entre os artefatos modernos, fi cou
preso no ciclo da mudança tecnológica inadiável. Edison preferia o formato
cilíndrico para as gravações de sons; e de fato era possível defender tal
idéia como o desenvolvimento mais natural do mecanismo rotacional do
primeiro fonógrafo. Quando seus concorrentes lançaram o disco achatado,
que precisava de uma plataforma giratória e acabaria por distorcer o som
à medida que o braço da agulha avançasse nas ranhuras do disco, Edison
se opôs a ela. Mas quando os consumidores passaram a preferir os discos
porque eles poderiam ser guardados sem ocupar muito espaço, Edison, que
estava bastante empenhado na fabricação, criou um disco ainda melhor, com
dois lados, e deixou o ato de guardá-los ainda mais efi ciente. Ele não fi cava
satisfeito enquanto via defeitos nas invenções. Como escreveu certa vez em
seu diário, “a inquietação é o mesmo que a insatisfação — e a insatisfação
é a primeira necessidade do progresso. Mostre-me um homem plenamente
satisfeito, e eu lhe mostrarei um fracassado”.
O enorme número de artefatos existentes no mundo hoje é a garantia de
que haverá ainda mais coisas num futuro próximo, pois praticamente cada
objeto pode cair sob o escrutínio de alguém inquieto e insatisfeito, que não
acredita que “bom o sufi ciente” é sinônimo de algo livre de defeitos. A atitude
reacionária de deixar em paz o que é “bom o sufi ciente” torna-se inútil porque
o próprio avanço da civilização é a história da sucessiva correção (às vezes
excessiva) de erros, falhas e fracassos.
O “bom o sufi ciente” para uma pessoa talvez não o seja para outra, é
claro. Os canhotos tiveram de aprender a viver num mundo em que são
discriminados por maçanetas, carteiras escolares, livros, abridores de garrafa
e inúmeros outros objetos do dia-a-dia. Eles precisam usar luvas de beisebol
na mão errada se esquecerem suas próprias luvas em casa. Mas além das
luvas de beisebol e de uma ou outra carteira escolar, são poucas as versões de
artefatos para destros disponíveis também para canhotos, que simplesmente
aprenderam a viver num mundo em que ser destro é a regra. Tampouco eles
parecem sentir a necessidade premente de que sejam inventados objetos
próprios para canhotos.
Entretanto, como vimos, os artefatos especializados não evoluem a partir
das necessidades mais básicas, mas da observação idiossincrática das falhas
nos objetos existentes. Assim, existem inventores e fabricantes que criaram
objetos para canhotos, e estabelecimentos como a loja Anything Left Handed
Limited, na Brewer Street, em Londres, têm à disposição catálogos que podem
nos confundir com páginas que abrem da esquerda para a direita, e trazem
a numeração de acordo com isso. Embora alguns objetos da loja, como os
relógios que funcionam no sentido anti-horário, sejam mais divertidos que
práticos, coisas como tesouras de jardinagem e conchas de sopa para canhotos
são uma dádiva dos céus. Existe uma loja parecida em São Francisco, na
Califórnia, onde a esposa de um amigo meu achou um canivete suíço para
canhotos e o deu de presente ao marido. Sem saber que tal utensílio existia,
ele explicou que há muito havia se acostumado com o modelo disponível,
mas que estava ansioso para demonstrar como conseguia abrir as lâminas de
seu novo canivete com os dedos da mão esquerda e como girava o abridor de
garrafas no sentido contrário.
As facas de cozinha da Anything Left Handed têm cabos adaptados para
a mão esquerda, e suas lâminas também são serrilhadas para se adaptar aos
canhotos. Existem facas de mesa serrilhadas feitas da mesma maneira, assim
como garfos de sobremesa com o dente cortante do lado mais apropriado para
um canhoto. Cada objeto da loja corrige um problema ou uma chateação
que os canhotos precisam enfrentar ao usar algo que foi criado, de modo
deliberado ou sem querer, para os destros. Esse é um exemplo da maneira
como todos os artefatos se diversifi cam e a tecnologia evolui, pois à medida
que são usadas as coisas revelam suas falhas, ao menos para alguns de nós.
Embora inventores, designers e engenheiros nem sempre sejam os primeiros
a enxergar os problemas com a tecnologia e os objetos que criam, são eles
quem elaboram as soluções. E nós, enquanto isso, tendemos a aceitar que
nosso mundo é imperfeito em termos tecnológicos e não ligamos muito para
isso. Talvez até venhamos a modifi car nosso comportamento para acomodar
a tecnologia, como fi zeram os canhotos ao se adaptarem aos utensílios feitos
para destros — mas só até descobrirmos um artefato que foi aperfeiçoado e
passarmos a usá-lo, felizes da vida.
PETROSKI, Henry. A Evolução das Coisas Úteis: clipes, garfos, latas, zíperes e outros objetos do nosso cotidiano. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2007.