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O homem sem qualidades: modernidade, consumo e identidade cultural

Silvia Pimenta Velloso Rocha

1 A modernidade como ruptura com a tradição
A sociedade de consumo e, de maneira mais geral, a modernidade, da qual ela é a manifestação mais explícita e o sintoma mais agudo, pode ser compreendida como aquela que assiste ao fim das tradições. Uma sociedade tradicional é aquela na qual as instituições já dão como respondidas as questões fundamentais da existência humana: o que é amar e trabalhar, o que é uma família; em que se deve acreditar; por que motivos se deve morrer; por que e para que se vive, de que maneira, segundo que prescrições.

Para essas questões fundamentais, a sociedade de consumo não tem uma resposta; em compensação, ela tem muitas. Isso significa que posso escolher ser hetero, homo ou bissexual, casar ou não casar, ter ou não ter filhos (quantos, por que métodos, em que momento). Posso escolher ser budista, cristão, ateu, muçulmano; posso ser onívoro, macrobiótico, vegetariano, frutariano . qualquer escolha configura um estilo de vida, com seus comportamentos, valores, vestuário e hábitos de consumo característicos.

Uma sociedade tradicional deixa muito pouca coisa à escolha de seus membros. Fazer parte de uma tradição significa precisamente que não se pode escolher, que as instituições escolhem por nós. Nesse sentido, é enganoso ver na redescoberta de modos de vida tradicionais, tais como a acupuntura, a ioga, a astrologia, o zen-budismo, uma retomada da tradição. A própria liberdade de escolha significa que não se trata, aqui, de tradição. Quando se pode escolher entre tantas opções, é porque o que está em questão não é mais sua dimensão tradicional, que torna cada uma dessas categorias irredutível às demais, mas seu valor de troca, segundo o qual todas podem ser intercambiáveis (em função disso, como aponta Anthony Giddens, nem mesmo o fundamentalismo pode ser considerado o retorno a uma posição tradicional: tendo lugar no contexto da modernidade, ele se constitui como uma resposta ou reação a ela; de certa forma, ainda há que se escolher ser ou não fundamentalista).

Giddens aponta uma conseqüência da modernidade que é particularmente indicativa do processo de enfraquecimento das instituições: os comportamentos compulsivos que aparecem quando o peso da tradição não é mais suficiente para organizar a conduta humana. É o que ocorre, por exemplo, com o fenômeno da dependência química. As drogas eram conhecidas pelas sociedades tradicionais, que delas faziam um uso ritual ou místico; no entanto, tais sociedades desconhecem a dependência, uma vez que as modalidades de consumo estavam submetidas a normas muito precisas. Uma vez rompida essa norma institucional, o indivíduo já não sabe como, quanto ou para que consumir. Ou melhor: ele é livre para consumir, consome para seu prazer, e é essa liberdade mesma que o conduz ao desregramento.

Esse mesmo padrão ocorre com a alimentação: a sociedade contemporânea vê surgir distúrbios como a obesidade, a bulimia e a anorexia, igualmente desconhecidos no contexto pré-moderno; se ninguém nos diz como comer, já não sabemos como ou quanto fazê-lo. O mesmo pode ser estendido ao sexo, ao amor, ao casamento: na modernidade, sobretudo em sua fase tardia que alguns autores caracterizam como pós-moderna, esses comportamentos não encontram um princípio de ordenação e tornam-se desregrados. Proliferam então os grupos de auto-ajuda inspirados no modelo dos Alcoólicos Anônimos, narcóticos anônimos, neuróticos anô-nimos, consumidores compulsivos, dependentes de sexo, pessoas que amam demais. O homem moderno pretende ser livre (das tradições, das normas, das imposições sociais) esta é talvez sua maior pretensão; mas, entregues à nossa liberdade, não sabemos como usufruir dela.


2 Narrativa e biografia: o sujeito como efeito do discurso
Essa liberdade, portanto, tem um preço: o indivíduo livre e soberano, tendo rompido com o peso restritivo e repressivo das tradições, deve se tornar inventor de si mesmo, autor de sua biografia. Mas, por esse mesmo motivo, ele não sabe quem é. Na verdade, pode-se dizer que ele não é, não é nada a priori, de modo que deve inventar sua identidade. Em uma sociedade pré-moderna, ser alguém é ocupar o lugar social e institucionalmente designado pela tradição: é descender de certa linhagem, vincular-se a dada etnia, pertencer a uma religião ou classe social.

A modernidade assiste à crise das instituições que desempenhavam esse papel, e é a esse impasse que o consumo vem responder: ele surge como a derradeira esfera de produção de identidade, aquela que permitirá ao indivíduo criar a si mesmo, atribuir-se uma história e uma consistência ontológica.

Da perspectiva pós-metafísica que caracteriza as ciências humanas e a filosofia contemporânea, o sujeito é uma construção social, e não dispõe de uma essência capaz de fundamentar suas ações e determinar suas escolhas. Nada há nele de natural ou universal: o sujeito é uma construção, um efeito, o produto de uma narrativa.

Para compreender essa concepção, podemos evocar a reflexão de Michel Foucault, que entende o sujeito como um efeito das práticas discursivas. Produzidas historicamente, essas práticas são as condições de possibilidade do sujeito: constituir uma subjetividade é como criar um personagem numa narrativa, com base em estruturas que preexistem ao sujeito. Essas estruturas constituem tecnologias do eu, ou seja, formas de produção de subjetividade, que são as condições de possibilidade do sujeito. Cabe ao discurso estabelecer um fio (cronológico), uma coerência (psicológica) e uma consistência (ontológica) que tornem possível toda experiência de si. Ser um sujeito é ser capaz de empregar as tecnologias do eu, que determinada sociedade oferece aos seus membros, é ser capaz de se perceber, se reconhecer e se inventar com base nessa gramática. A palavra-chave aqui é inventar, que deve ser lida como o avesso de expressar.

Dessa perspectiva, não se trata de conhecer a si mesmo, nem tampouco de exprimir a si mesmo por meio do discurso, pois tanto a idéia de autoexpressão como a de autoconhecimento pressupõem um sujeito autônomo, dotado de uma essência, anterior e exterior aos discursos.

Para Foucault, ao contrário, a própria gramática da auto-expressão é uma estrutura do discurso, que constitui ao mesmo tempo o sujeito que fala e sua experiência de si. Construir uma identidade, produzir uma subjetividade equivalem a criar uma narrativa biográfica; o que caracteriza essa modalidade narrativa é que o autor, o narrador e o protagonista são a mesma pessoa. Se na aurora da modernidade essas práticas eram fundamentalmente da ordem dos saberes (a pedagogia, a medicina, a psiquiatria etc.) ou do imaginário (o romance, o teatro), podemos dizer que hoje essa função é desempenhada sobretudo pelo consumo e pela cultura de massa. Estes constituem uma das principais tecnologias do eu, e surgem como a modalidade por excelência de construção de subjetividades no mundo contemporâneo.

Podemos, portanto, levantar a hipótese de que o verdadeiro objeto de consumo (tomando aqui o termo objeto em sua dupla acepção de coisa e objetivo) não são nem os produtos nem os estilos de vida a eles associados, nem mesmo as sensações por eles proporcionados, mas a própria subjetividade que é deste modo produzida.

Ao consumir, criamos para nós mesmos uma biografia. Como diversos autores apontaram. Aliás, a própria questão de “saber quem se é” só se coloca no contexto da modernidade; lembremos que o “conhece-te a ti mesmo” dos gregos nada tem de busca psicológica ou de identidade individual: remete antes ao estatuto do humano em contraponto à esfera dos deuses. No capitalismo contemporâneo não se trata apenas de produzir mercadorias, mas também subjetividades. Ou, antes, as subjetividades também se tornam mercadorias. A sociedade de consumo institui um vocabulário, uma gramática e uma estilística do consumo, cabendo aos indivíduos apropriarem-se dessa linguagem para elaborar suas narrativas. É aderindo a determinados comportamentos, estilos de vida, idéias e atitudes que criamos uma identidade e instituímos uma consistência (sendo a própria vida pessoal entendida como o bem de consumo por excelência).

Produtos, atitudes, comportamentos, músicas surgem como a língua na qual essa narrativa é elaborada; se quisermos prosseguir com essa analogia, podemos dizer que a moda e a publicidade constituem a gramática que nos ensina como combinar esses signos e instituir uma fala.

3 O consumo como produção de subjetividades
Como aponta Michel Foucault, nas sociedades modernas o poder não opera de forma negativa pela repressão ou pela proibição, mas de modo fundamentalmente positivo: trata-se de prescrever, normatizar e produzir comportamentos. Não compreendemos o consumo se o remetemos a um mecanismo de controle ou de manipulação ideológica. Não se trata de dizer, seja assim, mas, ao contrário, de afirmar: seja como você quiser, seja você mesmo, ou ainda, imperativo máximo da sociedade de consumo, seja feliz. Não se trata de impor uma maneira de ser, mas de garantir que toda e qualquer maneira de ser encontrará sua expressão em mercadorias e bens de consumo.

Jean Baudrillard afirmava, em um estudo célebre, que o consumo é regido por uma lógica das significações, em que tudo se converte em signo (até as ideologias, as religiões, os estilos, as atitudes). A lógica do consumo não é, como poderia parecer, a de induzir a compra de determinados bens (ou seja, um fenômeno da ordem da manipulação), mas o fato de que qualquer coisa pode ser convertida ao serviço dos bens e transformada em mercadoria, ou seja, produzida, distribuída e consumida. Quer um xampu específico que se adapte ao seu tipo de cabelo, afro, liso, oleoso, seco na raiz e oleoso nas pontas, louro, tingido? Quer uma atitude de revolta, displicência, engajamento? Quer se sentir parte de um grupo, movido por um ideal comum? Ou, pelo contrário, quer a sensação de que você é único, e que precisa de uma roupa especialmente concebida para você? É esse o mecanismo da publicidade (e da sociedade de consumo, da qual ela é a expressão mais pura): traduzir um espírito, atitude ou estilo de vida em um objeto que possa ser adquirido, traduzido em uma música, um estilo de roupa ou de alimentação.

Nesse contexto, idéias como a de resistência ou contestação deixam de ter sentido. Contrariamente ao que diziam osteóricos até os anos 1970, o problema da sociedade de consumo e da cultura de massa não é induzir ao conformismo, porque mesmo o inconformismo pode ser vendido.

Como dizia uma canção dos anos 1990, a juventude é uma banda numa propaganda de refrigerantes... Essa lógica se estende até mesmo às atitudes de revolta ou rejeição. Foi o que ocorreu com a chamada contracultura, o movimento hippie nos anos 1960, o punk nos anos 1980 e o grunge nas últimas décadas do século, que teve seus comportamentos, roupas e adereços característicos produzidos em série e integrados como elementos de consumo. Para criar subjetividades, a cultura de massa, e a publicidade em particular, deve produzir rubricas, marcas ou estilos, de modo que a construção de toda .individualidade. se dê sobre um fundo de padronização. Esse paradoxo é ilustrado de maneira exemplar por uma publicidade das sandálias Melissa veiculada há algum tempo nos meios de comunicação: Vontade de ser diferente? Tenho, sim. O problema é que os outros também têm. Diferentes assim, acabam iguaizinhos entre si. Só que, para ficar diferente dos diferentes, posso acabar igualzinha aos iguaizinhos.

Conclusão: acho que vou pegar uma praia.. Quando a identidade e a diferença remetem à lógica das significações, a única subjetividade possível reside no modo como se vai combinar essas variáveis. Mas aqui é preciso lembrar: a imagem da cultura de massa como instância de homogeneização e padronização, levando todos os indivíduos a se vestir, pensar, comer e viver de maneira idêntica, não cabe mais aqui. Pelo contrário, o que ocorre é uma estratégia de incluir as diferenças, segmentar, personalizar. A sociedade de consumo se caracteriza por ser absolutamente inclusiva. Não há minoria, ou movimento que escape à sua lógica: gays, mães solteiras, negros, crianças, todos encontram aí seu lugar, desde que possam consumir. E a indústria vem descobrindo sucessivamente novos nichos, os adolescentes nos anos 1950-1960, as crianças a partir dos anos 1970, e mais recentemente os homossexuais, os negros etc. Toda diferença surge como uma demanda virtual por novos produtos, toda atitude ou comportamento configura um nicho de mercado, toda minoria é um público-alvo potencial. Assim, se antes criticava-se a Barbie por impor às meninas do mundo todo um mesmo padrão de beleza, ocidental, magérrima, cabelos lisos, traços finos, hoje existem diferentes versões da Barbie ou de seus sucedâneos, negras, mulatas, gordinhas, latinas, undergrounds, até junkies.

Do mesmo modo, estaríamos enganados em supor que a sociedade de consumo se afirma em escala mundial substituindo produtos e comportamentos locais por outros, globais. Ao contrário: tudo que é étnico, exótico ou regional surge como autêntico ou diferenciado. Assim, a busca de raízes, étnicas ou a valorização das culturas nacionais não constituem uma resistência à globalização, mas são antes um de seus efeitos. Em outras palavras, é do interesse da economia global que haja culturas locais a serem consumidas. É aquilo que Stuart Hall denomina retorno das etnias e que ocorre na música, na moda, na culinária, no turismo: o terceiro mundo, o étnico, o exótico, o oriental tornam-se bens de consumo valorizados (como ilustram o fenômeno da world music e as tendências étnicas na moda). Dito de outro modo, globalização não é sinônimo de padronização; o que é global é a lógica do consumo, e não o consumo de determinados produtos.

4 O consumidor como homem sem qualidades
Dissemos anteriormente que Ulrich é um anti-humanista, e sua perplexidade é mais reveladora da sociedade contemporânea do que todo o discurso humanista de condenação do consumo, discurso, aliás, tão ingênuo quanto marcado pela má consciência, já que, como aponta Umberto Eco, os próprios críticos da indústria cultural recorrem a ela para editar e divulgar seus livros.

Essa má consciência costuma se exprimir pelo lugar-comum, você não é o que você consome. Mas se o pensamento moderno abandona toda hipótese de uma essência metafísica, o que seríamos nós, senão isso? Desprovido do lugar e da consistência que lhe eram atribuídos pela tradição, o homem se reduz a um perfil do consumidor: somos exatamente o que consumimos; somos na medida em que consumimos. O efeito do consumo não é o de nos afastar de um eu autêntico ou essencial que, de um ponto de vista filosófico, não passa de ficção, mas de substituir o papel das instituições que, em uma sociedade tradicional, determinam o lugar do sujeito e respondem por sua identidade.

O que distingue o consumo como forma contemporânea de produção de identidade em relação a outras modalidades (pré-modernas) de subjetivação não é seu caráter falso ou inautêntico, mas precisamente o seu caráter livre. Compreendemos assim o impasse de Ulrich: o que distingue as sociedades modernas é que o indivíduo deve escolher por si mesmo; ser um indivíduo é justamente agir em seu próprio nome, sem o apoio da tradição e sem as imposições da coletividade. Por outro lado, livre dessas amarras, o indivíduo já não sabe quem é, porque é precisamente sua inserção social, sua inscrição em certas práticas coletivas que vai lhe dar uma identidade, ou seja, um sentido de ser eu mesmo. Dito de outro modo: por um lado, devo saber quem sou para consumir bem (ou seja, corretamente, há uma pedagogia do consumo expressa na publicidade que visa a nos ensinar como consumir), mas, por outro lado, apenas o consumo me permite saber quem sou (ou seja, criar uma identidade ou, em última instância, ser alguém).

Vivendo a celebração da liberdade de escolha, desconhecemos a sacralidade e o destino que definem as sociedades tradicionais. O problema é que não temos a opção de voltar a uma posição metafísica ou pré-moderna, ou seja: não temos a opção de não ter opção. É precisamente porque dispomos da possibilidade de tudo escolher que toda escolha se torna intercambiável e indiferenciada: estamos no mundo como diante de uma prateleira de supermercado. Podemos, portanto, estender ao consumo a observação de Baudrillard sobre a era dos direitos que define a modernidade, na qual todo comportamento busca sua legitimidade. Baudrillard pergunta ironicamente: Por que não reivindicar o direito de ser homem ou mulher? Por que não também o direito de ser Leão, Aquário ou Câncer? Mas o que significa ser homem ou mulher, se tivermos esse direito?

O homem sem qualidades é, paradoxalmente, o homem que tem acesso a todas elas. Ou ainda: se o homem contemporâneo é sem qualidades, não é porque tenha perdido uma essência mítica ou um eu que só sobrevive no imaginário humanista, mas porque, não dispondo de nenhuma qualidade a priori, torna-se virtualmente um consumidor de todas elas.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

BAUDRILLARD, Jean. Transparência do mal. Campinas: Papirus, 1990. Para uma crítica da economia política do signo. Porto: Martins Fontes, 1969.
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GIDDENS, Anthony. Mundo em descontrole: o que a globalização está fazendo de nós. Rio de Janeiro: Record, s/d.
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LARROSA, Jorge. .Tecnologias do eu e educação., in SILVA, Tomaz Tadeu da. O sujeito da educação. Petrópolis: Vozes, 2002, p. 69.
MUSIL, Robert. O homem sem qualidades. Tradução de Lya Luft e Carlos Abbenseth. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1989.
ROCHA, Everardo. Magia e capitalismo. São Paulo: Brasiliense, 1985.
BAUDRILLARD, Jean.Transparência do mal.Campinas: Papirus, p.94.