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Arte industrial (crônica)

Lina Bo Bardi

Faz-se hoje uma certa confusão entre artesanato, artesão, artista popular. Existe toda uma literatura (não queríamos usar a palavra retórica) a esse respeito. O que é artesanato? A expressão de um tempo e de uma sociedade, um trabalhador que possui um capital mesmo modesto, que lhe permita trabalhar a matéria prima e vender o produto acabado, com lucro material e satisfação espiritual, sendo o objeto projetado e executado por ele mesmo. O que é o artesão hoje? É um executor, um especialista sem capital que empresta o próprio serviço a quem a ele fornece a matéria prima, seja dono ou cliente, e recebe um salário em troca do próprio trabalho de execução. É o assim chamado proletário.
Qual seria a pergunta justa para uma válida resposta? Evidentemente a seguinte: existe uma razão eficiente que justifique as injeções oficiais a este pseudo-artesanato? Evidentemente não. Porque desse modo tira-se ao artesão a razão mesma de sua existência, quer dizer, a satisfação do poder criar o objeto artisticamente e ser materialmente o proprietário desse objeto e, em seguida, o seu vendedor. O problema urgente e gravíssimo do conhecimento do ofício e a satisfação moral derivada do trabalho são confundidos com o artesanato. A Itália, a Espanha e Portugal distinguiram-se neste protecionismo paternalístico que originou os vários “pueblos” espanhóis e “Instituti d’arte artigianali”, verdadeiros museus de horrores e catálogos de espécies inomináveis. O problema é outro, É um problema urgente que deriva justamente do fim da era artesanal: a cisão entre técnico e operário executor
O arquiteto que projeta um edifício não convive com o pedreiro, o carpinteiro ou o ferreiro. O desenhista de objetos domésticos, com a ceramista, o vidraceiro. O desenhista de móveis com o marceneiro. Cada um por conta própria. O desenhista técnico tem complexo de inferioridade pela ausência de competência prática. O operário executor é aviltado pela falta de satisfação ética do próprio trabalho. O assunto central poderia ser colocado na base da colheita imediata de todo o material artesanal antigo e moderno existente em cada país, na criação de um grande museu vivo, um museu que poderia se chamar de Arte e Arte Industrial, e que constituísse a raiz da cultura histórico-popular do país.
Esse museu deveria ser completado por uma escola de arte industrial (arte no sentido de ofício, além de arte) que permitisse o contacto entre técnicos desenhistas e executores. Que expressasse, no sentido moderno, aquilo que foi o artesanato, preparando novas levas não para futuras utopias, mas para a realidade que existe e que todos conhecem: o arquiteto de prancha que desconhece a realidade da obra, o operário que não sabe ler uma planta, o desenhista de móveis que projeta uma cadeira de madeira com as características do ferro, o tipógrafo que compõe mecanicamente sem conhecer as leis elementares da composição tipográfica e assim por diante. Os primeiros, fora da realidade e dentro da teoria. Os outros, amargurados pelo trabalho mecânico de soldar uma peça, apertar uma porca, sem conhecer o fim do próprio trabalho.
Não queremos assim desvalorizar a obra de ajuda oficial a grupos artesanais. Essa ajuda é uma transição, uma fase de transição necessária, enquanto o artista popular é artista pura e simplesmente e não pode sofrer influências dirigidas.

A nossa é uma época coletiva Ao trabalho do artesão-dono substitui-se o trabalho de equipe e os homens têm que estar preparados para esta colaboração. Sem distinção hierárquica entre projetistas e executantes. Somente assim, poder-se-á voltar à felicidade de uma participação moral a uma obra. Uma participação coletiva, não mais individual; o resultado técnico do artesanato dos nossos dias: a indústria.


Texto cedido pelo Arquivo Instituto Lina Bo e P. M. Bardi, São Paulo, SP (www.institutobardi.com.br)


Diário de Notícias – Cidade do Salvador, 26 de outubro de 1958. Disponível em: http://www.acasa.org.br/ensaio.php?id=169&modo=