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Com a palavra: Nemer

1. O processo de criação na cultura brasileira: uma visão retrospectiva

Antes de o Brasil ser descoberto, os nativos tinham uma equação muito clara em relação à natureza e ao fazer. Era uma cultura somática: do grego soma, que significa corpo. O substrato para criação artística era a ligação do corpo com a terra, a experiência sensorial com a natureza. Por isso, toda produção indígena é muito coerente: uma extensão da natureza através do fazer do homem. A esse acúmulo de saberes que a tradição celebra é que chamamos genericamente de cultura indígena. A arte plumária, por exemplo, chega aos nossos dias como a mais sublime criação e que, milagrosamente, sobreviveu como testemunho desse casamento com a natureza, com a tradição e com a força criativa.

Do momento em que o Brasil é descoberto – ou, sob a ótica da cultura já existente, ocupado – começamos a conhecer uma espécie de perda desse paraíso da cultura somática e ganhamos uma fissura, uma cisão entre a cultura natural (aquela que emana da natureza) e a pedagógica, algo construído, elaborado como raciocínio e que, no nosso caso, vem de outra cultura e se impõe à nossa. Isso representa, em sua origem, a bipartição da cultura brasileira, instituindo uma cultura popular e outra das elites. Esses dois segmentos, ao longo da história, vêm experimentando movimentos cíclicos de convergência e de afastamento.

As primeiras intervenções na cultura nativa aparecem com os jesuítas, com a colonização portuguesa, que, por sua vez, já trazia suas próprias influências mouras. Desta forma, recebemos junto com as influências (já influenciadas) o desafio de lidar com adversidades. Isso tem representado um estímulo para a criação, uma vez que a transforma em atividade permanente de manipulação de dados e influências. Sabemos hoje que a dialética do conhecimento consiste justamente em perder paraísos e reganhá-los de uma nova forma e que a verdadeira criatividade reside em saber manipular contradições, fazendo com que elas se acomodem ao nosso momento e da forma mais adequada.

Mamelucos culturais

O antropólogo Darcy Ribeiro dizia que nós, brasileiros, somos “um bando de mamelucos”. O termo mameluco vem do árabe, mamluk, e significa “aquilo que se possui, escravo”. Simbolicamente designa também "a criança que nasce negando o leite da mãe" e que, por extensão, nega a família, a tribo e é nômade. Na condição de colonizados, portanto, nós brasileiros seríamos um “bando de possuídos por alguém” ou, entre uma dominação e outra, um “bando de possuíveis”. Em outras palavras, seríamos nômades sem jamais sair do lugar, uma vez que nossa originalidade foi sendo, ao longo desses processos, substituída por influências sucessivas, portuguesas, inglesas, francesas, e hoje, globais. Por isso, atualmente, estamos vivendo um período muito atípico de desenraizamento, de influência sem cara definida.

Em outros momentos da nossa história, vale citar, tivemos períodos de convergência cultural. É o caso do barroco mineiro, no período do ciclo do ouro no século XVIII. Por uma série de fatores, como o isolamento geográfico, a miscigenação e urbanização aceleradas, o excedente econômico, criou-se uma sociedade muito atípica na região, se comparada à sociedade brasileira na época. Por exemplo, senhores proprietários de minas faziam filhos em escravas negras e as crianças, fruto dessa união, já nasciam alforriadas. Como já não eram mais escravas mas também não tinham acesso à aristocracia, gravitavam sem rumo num limbo social. Fatos assim acabaram criando uma variada gama de substratos na sociedade local, o que subvertia o sistema tradicional de castas, que ainda prevalecia no Brasil colônia.

No período do ouro, a palavra em Minas Gerais era prosperidade. A capital, Vila Rica, crescia a tal ponto, que no início do século XVIII chegou a disputar com a Cidade do México o status de maior mercado das Américas. Fomos uma Serra Pelada de luxo e a sociedade local chegou a experimentar uma autonomia, que a fez mover-se ideologicamente, tramando a Inconfidência Mineira, na tentativa de tirar o Brasil da condição de colônia.

Como era uma sociedade atípica, teve que improvisar meios de se organizar, e o fez através da criação de irmandades religiosas, que funcionavam como verdadeiras comunidades de base. É curioso notar que cada segmento social, reagrupado em uma irmandade, escolhia como patrono santos que refletiam os seus próprios valores. Por exemplo: os reinóis e altos funcionários, elegiam divindades abstratas – como o Divino Espírito Santo –, como se nada houvesse na Terra acima deles; os escravos escolhiam santos mártires com histórias semelhantes às deles – como Santa Efigênia, uma princesa núbia que foi queimada na torre; os membros de segmentos intermediários da sociedade, como os artistas e intelectuais, escolhiam santos vindos da nobreza, mas que tinham feito um voto humanista de pobreza, com São Luiz Rei de França ou São Francisco de Assis. Gesto humanista, aliás, muito em moda com o Iluminismo. Portanto, era uma sociedade em sintonia com o seu tempo. Essas confrarias tinham autonomia civil e administravam os dízimos doados pelos dos irmãos. Era um embrião de uma democracia. Para se ter uma idéia – e aí entra a questão cultural -, eram elas, as irmandades, que fomentavam a atividade de criação artística, contratando arquitetos, decoradores, músicos, para construírem suas igrejas, decorá-las e compor peças musicais originais para as missas e festas religiosas. Quando o irmão morria, ele era enterrado na igreja que ajudou a construir e sua viúva recebia uma pensão ou uma casa para morar. As irmandades tinham, portanto, um papel social que ultrapassava a assistência religiosa. Pode-se falar aqui de uma cultura integrada, uma vez que toda a sociedade participava da construção, da experiência da criação e da fruição de seus produtos.

Tudo ia muito bem, até a chegada no Brasil de Dom João VI com a missão artística francesa, em 1816. Com eles, iniciou-se um novo período de distanciamento entre os dois pólos da cultura de que falávamos. Em Minas Gerais, com a decadência do ouro, as cidades coloniais passaram a dormir um sono profundo. No Rio de Janeiro, eram criados o Museu Nacional de Belas-Artes, o Jardim Botânico; são construídos prédios e monumentos e criados cursos de arte. Enfim, tratava-se de uma ampla ação cultural vinda da metrópole e que aqui se instalava. A estética da época, o neoclássico de origem francesa, deixa fortes marcas impregnadas em nossa cultura. Elas ficaram de tal forma enraizadas que o fazer artístico, a criação e a iconografia do período refletem isso. Muitas igrejas do ciclo do ouro foram repintadas por artistas franceses ou italianos, “para adequá-las ao novo gosto”. Não é raro ainda encontrar, nas varandas de casas neoclássicas de Belo Horizonte, a nova capital de Minas criada em fins do século XIX, pinturas decorativas ovais com cisnes, montanhas nevadas e outras imagens, completamente distantes da nossa iconografia natural.

Enquanto o gosto burguês viajava por edulcoramentos que Mário de Andrade chamou de “versalhes de estuque”, o fazer popular e a criação espontânea, por sua vez, adormeceram junto com o ciclo do ouro, restringindo-se aos momentos em que o homem precisava se relacionar com a divindade. São desse contexto os ex-votos, que se tornaram a expressão artesanal e artística mais contundente do período. Os santeiros, que herdaram dos grandes mestres as lições dos altares, retábulos e talhas, passaram a se dedicar à criação de imagens para devoção caseira, objetos de fé e de agradecimento às graças recebidas, assumindo, assim, o papel de intermediar a relação entre o homem e o divino.

Beber na tradição para ousar na contemporaneidade

Após o longo período de sono, o barroco mineiro veio a ser redescoberto e elevado à categoria de identidade cultural no início do século XX, através dos poetas e artistas modernistas Mário de Andrade, Oswald de Andrade, Tarsila do Amaral, etc. Durante uma viagem a que fizeram juntos a Minas Gerais em 1924, os intelectuais paulistas ouviram de seu amigo Blaise Cendrars, um poeta surrealista franco-suíço, que eles “deveriam tomar o trem para Minas ao invés do navio para o Havre”. A observação foi feita sob o impacto do (re)descobrimento de influências culturais devidamente antropofagiadas e das raízes genuinamente brasileiras que tiveram a oportunidade de vislumbrar.
A resposta a Cendrars veio rápida. No livro Pau Brasil, publicado no ano seguinte, Oswald de Andrade celebra o encontro com os Passos de Congonhas, esses “degraus da arte de meu país onde ninguém mais subiu”. O gesto antropofágico do poeta modernista ultrapassou a poesia, ampliando-se para uma ação política decisiva que desembocou na criação dos órgãos de preservação do patrimônio histórico e artístico. Era também o reconhecimento da obra de Antônio Francisco Lisboa - o Aleijadinho - como referência fundamental para a arte brasileira e luz paradigmática para sua modernidade.

Vale lembrar que o trabalho do Aleijadinho é uma síntese de várias influências e marcado por uma grande originalidade (originalidade não no sentido de fazer aquilo que jamais foi feito, mas no sentido de reconhecer-se nas origens e ser um tradutor delas). Da mesma forma um contemporâneo seu, o pintor Manuel da Costa Ataíde, que lançava mão de pigmentos da região – como óxidos de ferro, tintas vegetais, etc. – para criar sua paleta de cores. São de grande significado para nossa identidade cultural suas pinturas, encontradas nas igrejas coloniais mineiras, com sua luz tropicalizada e suas virgens mulatas.

O conceito de modernidade inaugurou uma profunda revisão da cultura brasileira, que veio com a idéia da antropofagia, ou seja, digerirmos as influências recebidas e, de forma criativa, elaborá-las. É claro que as influências são inevitáveis, pois não se vive numa redoma. Essa dinâmica é parte da vida e precisamos ter a força criadora ativada em nós, para que ela nos norteie a digerir essas influências, eliminar o desnecessário e metabolizar aquilo que interessa.

Onde está a identidade cultural?

Com o golpe militar de 1964 e com a ditadura instalada, o país passou a viver sua criatividade sob censura e medo. Com exceção de algumas criações artísticas – que fazem parte hoje de nossa memória histórica – e que promoviam o afrontamento com as forças da repressão, foram décadas de obscurantismo.

Mais tarde, com a possibilidade de abertura política, assistimos à criação de uma política, por um lado, voltada para a busca de uma identidade cultural (que anos de arbítrio tinham solapado) mas, por outro lado, tratando as manifestações culturais como simples ícones de identidade, afastadas de seus contextos históricos e de sua própria dinâmica. Tínhamos, na época, um movimento – Ouro Preto SOS – voltado para a conscientização
da população da cidade no sentido de se preservar o legado histórico. Vivíamos em atritos constantes com os órgãos oficiais de preservação porque, na prática, eles preferiam o trabalho tecnocrático e os delírios teóricos do que propriamente o trabalho de campo urgente dentro da cidade.

Percebendo que não poderia haver uma abertura política unilateral, ou seja, sem a participação da sociedade, e que a verdadeira abertura implica numa identificação de nossa originalidade, o próprio governo tomou a si a estratégia de promover uma arqueologia de nossas manifestações genuínas para, através delas, desenhar nossa face. Uma espécie de neoufanismo. É dessa época a criação de órgãos governamentais como – atentem para os nomes! – Pró-Memória, Centro Nacional de Referência Cultural, entre outros. Só que isso foi artificial, porque o que realmente interessava para eles eram os ícones de identidade que poderiam ser usados pela mídia. Já vivíamos o surto midiático. Quem não se lembra da campanha da Rede Globo de que “quem preserva, permanece”, enquanto sabíamos que as ações práticas de preservação, por parte do Estado, eram nulas? Preferiam as campanhas de títulos consagratórios. Quando, nos anos 80, Ouro Preto foi elevada pela Unesco a Patrimônio Cultural da Humanidade, o poeta Carlos Drummond de Andrade escreveu no Jornal do Brasil que “qualquer dia Ouro Preto se transformaria em Patrimônio Interplanetário e seus problemas continuariam sem solução”. Afastadas assim, por pura virtualidade, da dinâmica cultural, as instituições públicas com seus projetos só aumentaram o abismo entre a cultura popular e a das elites.
Mas são dessa época, também, iniciativas de mapeamento da cultura brasileira, um mergulho na cultura popular como fonte de inspiração para o fazer artístico erudito, empreendido por grupos ou por criadores individuais. Exemplos: as edições Marcos Pereira ou a obra de alguns compositores da MPB.

Dessa política equivocada dos anos 70 e das décadas seguintes, podemos tirar hoje algumas lições. A primeira delas é a consciência de que toda e qualquer aproximação em nome da chamada cultura das elites (ou institucional) na cultura de domínio popular, deve ser marcada por uma cautela extrema, de rigor antropológico. Em segundo lugar, devemos ver os objetos que dessa cultura emanam como materialização de uma cultura viva, dinâmica; podemos até “congelar” determinadas manifestações dessa cultura em museus, exposições etc, mas devemos saber que isso é - como uma linha reta que traçamos sobre o papel - apenas um segmento de reta, não a linha inteira, que é infinita. Por fim, qualquer intervenção nesse sentido deve exigir, antes, conhecimento de sua essência, de sua origem e discernimento na releitura.

Em busca do genuíno

Chega-se agora o momento em que se vive a virtualidade exacerbada. Se tomarmos o artesanato como exemplo de algo que emana naturalmente da cultura popular, ele passou a ser uma reminiscência do que se fazia tradicionalmente. Mas, sob o bombardeamento da mídia eletrônica e do êxodo rural, o artesanato entrou num movimento de deculturação. Os artesãos já não usam as mesmas técnicas. Mudaram os materiais, os conceitos, o ritmo das coisas. E a elite faz uso dessa virtualidade, assim como as instituições, que curiosamente se debruçam vorazmente, em busca de elementos genuínos, sobre a velha realidade que não conseguem mais encontrar.

Somos assim mamelucos. Desenraizados e buscando na cultura popular uma fonte de identidade capaz de nos alimentar animicamente. Aí entra o artesanato, por exemplo, como produção que une tradição e criatividade, através do qual queremos dar cor e segurança telúrica ao nosso cotidiano exaurido. Parece ser para nós como um fio-terra. Mas eis um paradoxo: apesar de significar para nós fonte vigorosa de identidade, um oásis de criação genuína, não temos como preservar o artesanato virgem pois, além de pressões externas de toda ordem, ele está baseado em precariedades materiais e humanas, produzido sob o signo da pobreza, da necessidade vital. Querer preservá-lo como é, é correr o risco de se querer preservar as condições precárias em que é feito. De qualquer modo, a única saída que temos é criar, pois esta é a coluna dorsal do ser humano. Temos que antropofagiar, inclusive o artesanato, temos que "aprender a fazer renda e ensinar a namorar". Temos que ver a realidade com neutralidade e, humildemente, seguir seu ritmo.

Sob o álibi da busca de melhoria das condições econômicas e sociais da população, a história da política cultural dos anos 70 de que falamos se repete. Muitas instituições estão agindo em prol de comunidades artesanais. Muitas vezes, porém, têm à frente técnicos que fazem pesquisas inventariando uma série de supostos ícones do lugar. E os órgãos do Estado acham essa solução milagrosa. A questão é que levantamentos deste tipo são virtuais, vagueiam como zumbis num limbo, sem jamais tocarem a dinâmica cultural do contexto, o âmago da criação. O artesanato é fruto da mão do ser humano e depositário de sua cultura complexa. É importante conhecer a artesã-bordadeira e ouvi-la, criar meios para fazer emergir o que ela considera um ícone. Ela é a criadora e só ela poderá ser a intérprete. Ela não precisa fazer jogos americanos com os principais monumentos de sua cidade. É preciso acreditar que os ícones vêm da inspiração, vêm do coração, vêm de algum território misterioso, mas certamente da pessoa que faz. A intervenção adequada consiste, muitas vezes, em apenas ajudá-la a ver, a aperfeiçoar aquilo que ela faz, mas sempre respeitando a sua essência. A gente vê logo quando a pessoa sente que, com a sua intervenção ela cresceu e não, ao contrário, ela se anulou.


2. Maria Lira, nasce uma artista

Concluída essa visão de caráter mais histórico, gostaria de contar para vocês a história da
artesã Maria Lira, uma mulher de personalidade forte e interessante, que vive no Vale do Jequitinhonha, região muito pobre situada no norte de Minas Gerais.

Como a maioria das artesãs do Jequitinhonha, Maria Lira passou grande parte da vida no isolamento e na aridez. A vida nessas terras mineiras é essencial, se dá com o mínimo necessário. Paradoxalmente, produz-se ali uma cerâmica única na cultura brasileira. Apesar da indiscutível beleza plástica que as peças produzidas no Jequitinhonha têm, o caráter utilitário sempre prevaleceu, como objetos de resistência a uma terra inóspita e a um cotidiano duro.

Maria Lira produzia esculturas diferentes do que é habitual ao imaginário coletivo. Ela acumulava também o papel de líder comunitária e articuladora política na tentativa de trazer uma vida melhor para a região. Até que um dia ela começou a ter feridas nas mãos, que se abriam em chagas. Sabendo disso, Lélia Coelho Frota, amiga comum de Maria Lira e minha (e que por muito tempo trabalhou em pesquisas para um dicionário de cultura popular no Vale do Jequitinhonha), decidiu levá-la para Belo Horizonte, para uma consulta a um dermatologista. Depois dos exames, o diagnóstico: Maria Lira estava com alergia ao barro e, para ficar com as mãos boas, não deveria tocar essa matéria-prima – nunca mais.

Segundo me contou Lélia – e vocês podem imaginar o quanto isto significa - o mundo de Lira desabou naquele momento. Ela entrou em profunda depressão e calou-se diante da perda de seu ganha-pão, do essencial que possuía e da possibilidade de continuar em sua atividade criadora. Caminhando silenciosamente pelas ruas, depois da consulta, as duas passaram em frente ao Palácio das Artes de Belo Horizonte e Lélia sugeriu que entrassem para ver uma exposição de trabalhos meus que estava acontecendo. Havia cerca de 60 aquarelas expostas, de dimensões diferentes; se fosse preciso definir numa única palavra o que se passava lá dentro, tanto através das obras quanto da montagem, eu usaria a palavra “silêncio”.

Elas viram a exposição, sentaram-se em um banco, não trocaram uma palavra. Viram e reviram. Ficaram lá praticamente a manhã toda. Ao saírem, Lira disse para Lélia: "O que vi agora é o que quero fazer". De volta ao Jequitinhonha, a artesã raspou terra do quintal, tirou alguns pêlos de um gato e amarrou-os em um bambu. Com uma cola, misturou tudo e, sobre um pedaço de papel de pão, fez sua primeira pintura: um bicho estranho. Assim que pôde, mostrou-o para Lélia, que me ligou contando toda essa história e pedindo que eu recebesse a Lira. Isso foi em 1996.

Foram 15 dias até que Lira pudesse ir a Belo Horizonte. Quando ela entrou no meu ateliê e me mostrou o que tinha feito, tive o raríssimo sentimento de estar vendo a criação em sua gênese, em seu estado mais puro. Era o impulso criativo no que ele tem de mais essencial, movido por uma convergência de várias necessidades, ponto crucial do qual se fala que as grandes invenções nascem.

Fiquei muito emocionado. Percebi que nosso encontro não era casual e sabia que, a partir daquele momento, eu tinha um papel pedagógico e humano a desempenhar. Deveria agir com extrema delicadeza e, ao mesmo tempo, com segurança e deliberação. Havia a questão da sobrevivência, mas havia também, e sobretudo, a questão da arte. Então eu disse: "Lira, o que você fez é uma maravilha! Se tem vontade de continuar nisso, não pare com suas pinturas. A veiculação do trabalho - como mostrar, como vender - isso é uma outra questão, uma conseqüência natural e futura”. Ela voltou para o Jequitinhonha e não parou mais, deslanchando uma verdadeira obra.

Até que um dia, numa das visitas ao meu ateliê, ela me trouxe uma grande produção. Senti que era o momento de começar a ajudá-la na divulgação do trabalho. Liguei para uma amiga marchand e disse que Maria Lira era uma artista pronta, com uma obra construída com grande talento. Naquele momento eu era um vendedor, com a vantagem de estar plenamente convencido da qualidade do meu produto e consciente de que a vida nos reserva tarefas as mais inusitadas. Eu tinha ainda que fazer um discurso de clareamento para a marchand. Disse que o trabalho de marchand e de galeria deveria ser sempre renovado, ousando descobrir novos artistas e lançando-os a preços acessíveis; que a criatividade não é coisa reservada só aos artistas, mas a todas as pessoas, e que um marchand criativo leva vantagem (até financeiramente, se esse é o medidor) sobre um marchand burocrata, que fica sentado sobre nomes consagrados, mas que são geralmente apenas artistas-estrelas de um mercado vulnerável, que brilham naquela noite e naquele hemisfério; enfim, que aquela era uma grande oportunidade para a amiga de dar um salto qualitativo em si mesma e em seu trabalho como galerista.

A marchand topou. Comprou grande parte e colocou as obras à venda a preços baixos, de modo a possibilitar grande rotatividade dos trabalhos na galeria. O resultado foi uma explosão. Intelectuais meio duros se encantavam e conseguiam comprar; colecionadores adquiriam várias obras; arquitetos sugeriam os quadros de Lira a seus clientes, decoradores enchiam paredes inteiras de ambientes na Casa Cor, etc. Depois dessa arrancada, a artesã, agora artista (como se fosse simples separar os dois termos...) vem ganhando a vida. Ainda assim, continua vivendo isolada, manteve a qualidade do trabalho, não deixando que as conquistas afetassem negativamente sua criação. Periodicamente vem a Belo Horizonte e está agora ilustrando um dicionário de cultura popular.

Contei esta história com tantos detalhes porque ela é muito bonita mas, sobretudo, para ilustrar o embate ao qual estamos sujeitos, as forças do destino agindo, o renascimento de uma artista, o alto grau de complexidade que envolve encontros deste tipo, tanto no nível humano quanto no do fazer. Este caso entra aqui também como um case, uma dessas narrativas que se fazem para mostrar problemas e metodologias de solução. É um case no sentido de vermos como são tênues as fronteiras entre arte e artesanato. O mais comum é um artista não poder se dedicar inteiramente à sua criação e render-se à repetição artesanal de um produto, para ganhar sua vida. Aqui, é um feliz caso contrário, raro, mas possível.
Só sei que, no final das contas, perpassa tudo isto a alegria da descoberta de uma criação genuína, um inequívoco sentimento de empenho, um corpo a corpo, um acompanhamento atento ao outro, quase um sacerdócio. Seria exigir demais que as instituições agissem um pouco assim?
Seguem algumas imagens de cerâmicas do Vale do Jequitinhonha e outras que mostram obras de Maria Lira.
São comuns as
moringas no artesanato do Jequitinhonha, especialmente feitas como figuras humanas. O corpo é inteiramente oco e a cabeça serve de tampa. Elas sempre guardam água, ou porque não há água encanada na casa, ou porque os períodos de seca são muito grandes. Os personagens representados são muito arcaicos, mas ao mesmo tempo com biótipos muito semelhantes aos homens e mulheres da região. No caso da representação de animais, eles são quase rupestres. A moringa, apesar de ser um objeto utilitário, ela ultrapassa os limites da função, pois contém uma poética que vem de uma certa distorção, de uma precariedade formal que se transforma em força expressiva. Adélia Borges me lembrou de uma expressão da Cecília Meireles que cabe perfeitamente neste caso: “boniteza torta”.
A principal matéria-prima desses objetos é a tabatinga, um barro branco típico da região. Para pintá-los, os artesãos usam os óxidos, pigmentos de terra, que peneiram e aplicam sobre a cerâmica. O imaginário do Vale do Jequitinhonha é muito original. Há uma grande incidência de
figuras antropomórficas, mas ao mesmo tempo elas dialogam – ou até se confundem – com os animais. Estas fronteiras nunca não são muito claras, o que acaba criando no objeto uma tensão surrealista. Ainda que se considere na peça esse diálogo, esse convívio entre o homem e o animal, há momentos em que não se pode identificar nem um nem outro, nem mesmo que animal está ali. Essas concepções extrapolam a representação objetiva para entrarem num plano fantástico, mágico.
Também no que diz respeito à forma, a cerâmica do Jequitinhonha é criada com muita liberdade e imaginação. Os problemas estruturais da peça são resolvidos caso a caso, não há receita possível. Isso quer dizer que as soluções técnicas de execução de cada objeto são encontradas para atender a uma opção estética, a uma criação, no sentido artístico do termo. Nesse caso, a imaginação é soberana, é ela quem conduz a solução técnica.
Temos aqui dois exemplos desse tipo de competência em solucionar os desafios entre forma e função, assim como entre a criação livre e o acerto técnico. Na
primeira peça, que representa uma figura, vê-se uma espécie de empilhamento de três formas redondas: a de baixo é o corpo, a do meio é a cabeça e a de cima é um vaso; uma alça une os três volumes em um só, como uma solução funcional e estética compatível. Na outra peça – da qual vemos aqui um detalhe - a artesã-artista acrescentou uns volumes, em forma de pequenas cabaças, acoplando-os ao corpo da peça; entre esses volumes que brotam como tubérculos, ela pintou algo como uma galinha, em sua forma essencial, sintética, ainda que com umas pintinhas brancas pelo gosto alegre de decorar.
Da mesma maneira que é difícil distinguir, na cerâmica do Vale do Jequitinhonha, as fronteiras entre a figuração de homens e animais, é também difícil identificar os personagens. Freqüentemente, essas fronteiras de representação resvalam para o imaginário mais inusitado, o onírico. Daí, tudo é possível: monstros, fantasmas, demônios. Como toda sociedade de cultura arcaica, ainda com uma profunda adaptação ecológica, o povo do Vale convive com essa mítica da tradição, algo arquetípico, na qual monstros e anjos, demônios e santos, homens e fantasmas são pólos de um mesma esfera cultural.
Aqui vemos uma moringa, que representa uma figura propositalmente
grotesca, com os braços (ou asas?) abertos. A cabeça (que é a tampa da moringa), tem os olhos em órbita, o nariz adunco, boca grande, como uma máscara que afugenta espíritos e dá medo. Nas pontas desses braços-asas, outros monstros aparecem, como guardiões de um totem-templo. A pintura é abundante, profusa, delirante. Ao mesmo tempo em que ela reforça o sentido totêmico e amedrontador do personagem, ela se envereda prazerosamente pelos elementos decorativos.
Esta é a
Maria Lira. Uma cabocla típica, miscigenada nesse caldeirão étnico que é o Brasil. Mas há nela também algo de índio, uma serenidade atávica, uma discrição natural.
Como se vê, a cerâmica de Maria Lira já era uma criação atípica, fora dos padrões da maioria dos artesãos do Jequitinhonha. Há sempre uma conotação ideológica, política, ainda que tratando de temas universais, como a miséria e a dor. Nesta peça,
três figuras humanas emergem de um plano, que lhes serve de base mas também de chão, onde se contorcem mergulhados em angústia. Mas há também, neles, uma idéia telúrica, como se saíssem da terra, se modelassem a partir da terra.
Acho importante mostrar este trabalho de Maria Lira, até para percebermos a dimensão de sua mudança para a pintura, e como ela cresceu depois em linguagem artística. Aqui, ela mostra uma
máscara de cerâmica, com características de uma máscara africana. Esta máscara foi produzida num período de intensa militância política pelos direitos da mulher e do negro. Temos que admitir que o resultado estético está longe do que ela fazia ou do que, sobretudo, ela veio a fazer. Esta máscara nasce no terreno minado da ideologia, quase como um panfleto, cheia de estereótipos da iconografia africana, como esses objetos das feiras hippies.
Para se entender melhor este processo da Maria Lira, além do que contei, é indispensável ilustrar através das imagens, porque é uma história que diz respeito a uma produção visual. Assim, me vejo obrigado a mostrar também um pouco do que era o meu desenho naquela exposição em que Maria Lira e Lélia Coelho Frota entraram. São
formas aquareladas que flutuam no espaço do papel, num ritmo que é intuitivo mas ao mesmo tempo matemático. Aparentemente, nada aproxima este trabalho do que Maria Lira fazia antes e nem, como verão, o que veio a fazer depois. Já me perguntei o que exatamente a terá inspirado nessas obras. Mas isso, obviamente, escapa a qualquer tipo de análise racional, é uma coisa que se fala ao espírito ou não se fala. Cheguei a especular que o impacto de minhas aquarelas sobre Maria Lira talvez tenha sido a possibilidade de se fazer uma arte que nada mais é do que tinta sobre papel, sem elaboração do artesanato, sem mão no barro (simbólica e literalmente), enfim, uma luz no fim do túnel diante da possibilidade de um recomeço nos caminhos da arte a partir de materiais essenciais, como o papel, o pincel e os pigmentos.
Estes foram os
primeiros trabalhos que Maria Lira me trouxe. São pequenos, medem 17 x 25 cm e foram feitos assim que Lira voltou para o Jequitinhonha e começou a pintar, em 1996. Quando os vi, não tive dúvida de que estava diante de um grande talento. Percebi que a Lira não erraria mais, a não ser que se enveredasse por outro caminho, que saísse do trilho sobre o qual tinha entrado naquele momento. Impressionou-me a delicadeza da relação cromática. A capacidade de síntese da forma, dos elementos lançados sobre o plano. Ela pinçou animais rupestres da iconografia da região, um pouco indefinidos, mas com uma força de ícone. Ao mesmo tempo – e confirmado mais tarde pelas pinturas que se seguiram – Maria Lira tinha deixado de lado uma produção, na cerâmica, de origem mais racional, mais ideológica, como se sua arte tivesse a necessidade de ilustrar uma condição social e uma militância política. Para mim, o que se via era um grande salto qualitativo. A artista não se afastou de suas origens, pelo contrário, mergulhou nelas mais fundo. Resgatou o lúdico, o prazer da pintura, a possibilidade dessa pintura nascer de si mesma, de componentes mais subjetivos do seu imaginário. Nestes trabalhos, Maria Lira já inaugura algumas características suas e que vão permanecer ao longo de sua obra. Entre elas está o lançamento do animal sempre dentro de espaços especialmente preparados para ele, como algo que poderia parecer um útero, um balão, uma folha, uma flor. Isso dá à figura uma solidez de existência, um sentimento de pertencimento. Os outros animais ou elementos iconográficos que eventualmente entram na cena, o fazem como coadjuvantes, mantendo com os personagens principais uma ligação simbiótica mas, ao mesmo tempo, hierárquica como a natureza.
Quando comentei com Maria Lira sobre o requinte dos tons usados em seus trabalhos, ela me falou da origem dos pigmentos com uma grande simplicidade: “Essa cor aqui é da Fernão Dias. Essa outra é da BR-3”. E explica que em suas viagens, quando o ônibus faz as paradas para um lanche, ela desce e vai até o barranco mais próximo, de onde raspa o pigmento. Em casa, ela os tritura, mistura com água e cola e pinta sobre o papel.
Neste trabalho, ela lança dois animais estranhos,
um grande e outro pequeno. O grande ocupa a metade do quadro, enquanto o pequeno se encontra dentro dos habituais balões ou úteros, mas acompanhado de pequenas estrias laterais que lhe dão movimento. Embora eles pareçam flutuar perdidos no espaço do papel, um plano horizontal na base da composição os segura, como um fio-terra.
A simetria é uma das características da obra de Maria Lira. Neste exemplo, a artista demonstra uma grande sensibilidade na criação de uma dialética entre as formas que usa na composição. Lira divide o papel em dois planos iguais, ainda que com uma linha ondulada. Sobre o plano ocre ela lança o
animal em marrom, com seu corpo e sua cabeça se ajustando proporcionalmente à ocupação do plano. Nos cantos superior e inferior a artista coloca dois pequenos símbolos, que se desenham através de suas formas e contra-formas, dialeticamente.
Esse trabalhos são de 1997. O primeiro mede 33 x 45 cm e o segundo já é bem maior, medindo 49 x 59 cm. Ao crescer a dimensão, Lira não perde em poética. Ao contrário, parece até que a matéria do pigmento fala melhor. Vemos aí um desses animais imaginários,
como um sapo, que navega em águas que Lira define com poucas linhas, quase que simbólica e esquematicamente. No outro trabalho, dentro de uma forma oval, ela inventa outro animal, diante de um galho seco (ou de uma dessas plantas exóticas do cerrado), tratamento esse que se repete no rabo do bicho. Animal-árvore ou árvore-animal? Os reinos da natureza aqui se entrelaçam, em harmoniosa simbiose.
Trabalhos de 1998, de dimensões maiores, 49 x 59 cm, e que já mostram uma iniciativa de complexidade maior na composição.
No primeiro exemplo: aqueles animais, que antes entravam como elementos únicos, isolados de tudo, aqui começam a conviver em rodas, como rodas da vida. Há também uma ênfase maior nos princípios de uma composição simétrica e concêntrica, com uns núcleos dentro de outros, como embriões celulares, orgânicos. Mais uma vez, a sabedoria cromática prevalece, o que traz coerência e grande poesia ao trabalho. No segundo exemplo, Maria Lira opta por uma composição vertical, que ela divide em três planos. Cada plano recebe um elemento, bichos e formas decorativas. No do meio, ela faz crescer uma planta tratada sinteticamente, ladeada por sinais gráficos. Em todos os três planos, há uma região ondulada, como um chão de terra, que situa teluricamente os personagens.
Para terminar, nós temos aqui dois
exemplos das ilustrações – aliás, tecnicamente falando, das letras capitulares – que Maria Lira tem produzido para um dicionário de cultura popular do Vale do Jequitinhonha. Ela traz de sua pintura os elementos principais, seu estilo, digamos assim, para este trabalho cujo objetivo é enriquecer graficamente a edição. O interessante é que ela decide dividir a superfície do papel em duas, numa lançando a letra com pequenos elementos decorativos e, no plano inferior, uma reedição de seu imaginário característico.
O Laboratório Piracema de Design
O Laboratório Piracema de Design é uma antiga idéia da designer gaúcha, minha amiga Heloísa Crocco. Tendo uma parceria informal há muitos anos, estamos agora trabalhando juntos na implantação deste projeto.
Quando eu dirigia o Festival de Inverno de Ouro Preto nos anos 90, tivemos uma excelente experiência em uma oficina de pedra-sabão coordenada por Heloísa Crocco. Havia uma grande demanda de renovação do tradicional artesanato mineiro. Detectamos a necessidade e a importância de aproximação entre designers e artesãos e, desde então, sonhamos em formatar um projeto que possibilitasse uma interação permanente entre o design, a cultura popular e o artesanato. Seria, enfim, um projeto que nos permitisse contribuir para a oxigenação da cultura nesses setores.
Por uma série de fatores, chegou a hora de montarmos finalmente o Laboratório Piracema de Design, um espaço de pesquisa que tem, como território de especulação, a cultura brasileira de um modo geral e, mais especificamente, a criação da forma no Brasil. O papel do Laboratório é pinçar, canalizar e irradiar experiências culturais que se encontram ainda inconscientes e soltas no universo da cultura, com potencial desconhecido. Colhemos o material através da pesquisa, elaboramos esse material cientificamente (com estudos e reflexões) no Laboratório e tratamos de comunicar a experiência.
Uma pessoa receberia uma bolsa de estudos (cedida por empresas interessadas) para desenvolver um projeto, fazer um inventário sobre um determinado assunto, elaborá-lo e, ao término de provavelmente um ano, a experiência seria comunicada.
Estamos recebendo propostas de patrocinadores interessados em transformar o espaço em um laboratório de pesquisa de produto. Porém, nosso objetivo primeiro é incentivar a pesquisa ampla e diversificada, em universo plural e popular. Mas podemos, é claro, levar adiante projetos específicos. Vou dar um exemplo aleatório, que me ocorre: um pesquisador pode, por exemplo, estudar a forma dos eletrodomésticos dos anos 50 no Brasil e depois fazer o protótipo de uma batedeira de bolo para comunicar o trabalho (que poderia até ser vendido para a indústria); outro pode pesquisar o mobiliário popular mineiro do século XVIII ao início do XX cabendo aí, como resultado, uma exposição, a edição de um livro. O resultado a ser comunicado dependerá do tema, de corpus, da natureza da pesquisa.
O bolsista provavelmente terá um orientador previamente escolhido por ele, alguém que conheça bem o assunto tratado e que seja de notório saber na área. O profissional não precisa ser um acadêmico – a única herança da academia no laboratório será o rigor científico, esse sim, obrigatório.
Por que "Piracema"?
Para definir o nome do laboratório nós queríamos, fundamentalmente, que ele refletisse algo da natureza e ao mesmo tempo sintetizasse a idéia de sua filosofia. Até que o nome me veio pronto: piracema. O termo vem do tupi pira (peixe) com sema (sair) – donde saída de peixe, desova. Segundo o dicionário, piracema designa um fenômeno conhecido na natureza quando os peixes migram no sentido das nascentes dos rios, com fins de reprodução. Por extensão, designa também um movimento e o rumorejo dos cardumes quando sobem as correntezas.
Eu já estava com o nome na cabeça quando, uma noite, liguei a tevê e vi uma reportagem impressionante sobre o fenômeno da piracema do salmão no Canadá. Eles subiam correntezas e cachoeiras. Alguns ficavam presos nas pedras, nos trechos em que a profundidade das águas não ultrapassava a um palmo, mas nunca voltavam prá trás. Quando isso acontecia, era o banquete de outros animais, inclusive os lobos. Esse componente de obstinação e ao mesmo tempo a idéia do fracasso de uma empreitada servir de alimento para o outro, fechou para mim uma gestalt. Mesmo se errarmos em tudo o que fizermos, nossa iniciativa ainda terá a função de alimentar outras experiências. Com a certeza do nome, formulei a seguinte justificativa:
- Piracema é um substantivo de etimologia indígena, cultura que perpassa visceralmente nossa construção histórica, dos primórdios até os dias de hoje. Sua atualidade está em modelar, inequivocamente, a face de nossa identidade cultural. O Laboratório Piracema de Design tem, como campo de interesse para suas atividades de pesquisa, a cultura brasileira e suas manifestações genuínas.
- O movimento dos peixes em direção às nascentes é o mesmo que pretende fazer o Laboratório em direção às fontes culturais, às incontáveis manifestações da forma que emergiram ao longo do tempo e que continuam a emergir, habitando o nosso cotidiano.

- O fenômeno da piracema, apesar de muito estudado, ainda é um enigma para os biólogos no que diz respeito a suas razões maiores. Por motivos que só a natureza sabe, os peixes são movidos por incontida pulsão de voltar ao lugar onde nasceram, para nele projetar o futuro através da desova. Portanto, a imagem de um mergulho na tradição para, a partir dela, instalar a vanguarda, é a linha estrutural do Laboratório Piracema de Design.

- Assim como o objetivo da piracema é a reprodução, o Laboratório tem como meta, após pesquisa e elaboração, criar produtos capazes de entrar na dinâmica da cultura e a ela trazer frescor e qualidade.

- O fato de os cardumes subirem os rios implica um movimento contrário à corrente, o que pressupõe enorme esforço em nome da autonomia e da obstinação. A inteligência descondicionada, sem parâmetros preestabelecidos, conhecer as tendências sem a elas se ater, são princípios propostos pelo Laboratório Piracema de Design.

- Por fim, e fechando esta explanação sobre o Laboratório, mirar-se na natureza para fazer ciência é a primeira garantia de acerto".


Últimas palavras

Concluída a palestra, Nemer colocou-se à disposição dos visitantes da Casa para um bate-papo informal, no qual responderia a eventuais dúvidas. Essas respostas encerraram alguns depoimentos significativos, como:

"Uma vez me perguntaram se eu desenhava todos os dias. Eu disse que não, que só desenhava quando não tinha nada mais para fazer. E quando falo 'não ter mais nada para fazer' significa que só faço arte quando desejo sair da mediocridade natural".

"Talvez um dos grandes problemas da nossa época seja o mesmismo, a vala comum em que vivemos. Quem aceita viver nessas condições, tem a falsa impressão de que a cultura contemporânea desse mundo externo nos supre de tudo. Caímos num abismo quando constatamos o tamanho dessa ilusão”.

"Quando conheci Veneza, achei a cidade a coisa mais maravilhosa que tinha visto na vida. Como criador, porém, este seria um lugar do mundo onde eu não poderia de viver, uma vez que a beleza já estaria completa ao meu redor. Lá eu estaria condenado à contemplação e não à invenção. A precariedade muitas vezes se apresenta como um excelente veículo para a criação. Trata-se da necessidade material, psíquica ou espiritual ajudando na criação".

"Não devemos nos submeter aos modismos, eles nos emburrecem. Precisamos acionar nossa capacidade de ver com os próprios olhos, de lavar os olhos a cada momento e descobrir a poesia onde ela estiver. Se estivermos nessa espécie de vigília poética, nessa disposição para o despertar, somos capazes de ter um insight em qualquer lugar, mesmo num posto de gasolina ou numa avenida árida. O nosso cotidiano cresce em qualidade. O que se vê passa a circular na veia e, quando menos se espera, sai num trabalho, numa expressão qualquer, melhorando o mundo.”
NEMER, José Alberto. O artista plástico e professor, fala à CASA sobre arte, artesanato, criação, design Disponível em: http://www.acasa.org.br/ensaio.php?id=46&modo=